domingo, 13 de abril de 2008

A gastronomia no livro Rio das Flores de Miguel Sousa Tavares

Acabei de ler o romance histórico, Rio das Flores, de Miguel Sousa Tavares, que acompanhei através do clube de leitura À Volta das Letras.

A história liga Portugal, Espanha e o Brasil através da família Ribera Flores e em especial, através do personagem Diogo Ribera Flores, alentejano e descendente de proprietários de terra em Estremoz. Mas não é sobre a história do romance que eu pretendo escrever este post.

Um dos aspectos que gostei foi as referências gastronómicas que Miguel Sousa Tavares vai colocando ao longo do seu livro e que nos dão a conhecer um pouco dos hábitos, tradições, influências e estilo de vida dos portugueses, na primeira metade do século passado. Um povo também se conhece pelos seus hábitos alimentares (já devo ter lido isto algures!). Ao ler as referências identifico-me com imensas coisas relacionadas com a maneira de viver das gentes do campo, as diferenças de estatuto social viam-se, entre muitas outras coisas, pela mesa. Pela mesa farta ou por uma mesa de míngua.

Como este é um blogue dedicado à gastronomia, aqui ficam as referências que Miguel Sousa Tavares faz no seu livro. Deliciem-se!



Miguel Sousa Tavares, Rio das Flores, Oficina do Livro, 1ª edição_Outubro de 2007

«(...) Virgolino, que distinguia ao longe todos os pássaros, escutava todos os sons num raio de quilómetros, sabia as histórias de toda a gente, desde os "antigos" até os vivos, e, enquanto falava, ia desenrolando um lenço sujo que sacava do bolso do colete e de lá dentro tirava um pedaço de queijo duro e seco de ovelha ou um resto de chouriço que cortava minuciosamente com o seu canivete sempre à mão (...)» p. 14 e 15

«Os criados jantaram na cozinha e eles numa mesa junto ao grande fogão de sala, (...) enquanto esperavam pelo jantar, com umas lascas de excelente presunto da serra curado à lareira e vinho do planalto andaluz. (...) Veio uma sopa de legumes com grão e batatas, as perdizes caçadas de antevéspera, estufadas com enchidos, azeitonas e toucinho, e um assado de perna de porco com salada de alface. Vários jarros de vinho vieram e regressaram vazios (...).» p. 17

«(...) esperavam que o pai abrisse a discussão política que antecedia invariavelmente a sobremesa, o café, o brandy e os charutos, (...) o sabor do ensopado de borrego, com batatas novas e grão, demorando-se-lhe na boca, antecedendo o pato com azeitonas, que era apenas um ritual para quem porventura ainda tivesse apetite ou gula (...)» p. 54

«Tornou-se um conhecedor e um apreciador do serviço do restaurante [Hotel Avenida Palace na Avenida da Liberdade, em Lisboa], da sua excelente garrafeira e dos seus pratos de referência - os hors-d´oeuvres, os ovos mexidos com espargos verdes, o foie gras trufado, o rodovalho assado no forno com tomate farci, o empadão de lebre ou o pato estufado com azeitonas.» p. 70

«Pedro falava enquanto metia à boca simultaneamente uma azeitona curada e um bocado de pão, o olhar já pousado na terrina de sopa de beldroegas com tomate e queijo de ovelha.» p. 77

«Se apurasse mais o ouvido, ouviria também (...) - um "cantar alentejano" dos homens de Valmonte, afinando as gargantas com uma aguardente de medronho bebida à porta da botica da herdade (...)» p. 84

«(...) muitas vezes se sentava à sombra de um sobreiro e, tal como eles, sacava do seu rancho de "comida de ganhão", como lhe chamavam à base de alho, azeite, coentros, pão e um corte de toucinho para engrossar o caldo. Ou então, se a horta tivesse corrido bem, ficava-se por um gaspacho, que mais não era do que uma água mantida fria dentro de um recipiente chamado tarro, acrescentada de azeite e vinagre e onde boiavam pedaços de pão, tomate, cebola e pimento.» p. 87 e 88

«O cheiro a sardinhas, às belas sardinhas gordas e prateadas de Julho, que agora subia no ar da praça proveniente das várias barraquinhas de comida (...)» p. 92

«Comia (...), umas febras na grelha, acompanhadas de quando em quando por uns nacos de toucinho rigorosamente banha, umas farinheiras, (...), e umas rodelas vadias de chouriço de sangue, tudo acompanhado por incontáveis copos de vinho branco fresco (...).» p. 92 e 93

«A Diogo bem lhe apetecia também umas sardinhas no pão, que aquele cheiro era irressitível para quem passava.» p. 93

«Paravam ali [hotel Palace, em Estremoz], dizia-se, maravilhados pela sua cabeça de xara de porco em vinagrete, as migas de espargos selvagens, os pezinhos de coentrada, as migas de bacalhau, a perdiz estufada com os seus dezassete temperos de lei, o coelho desfiado à S. Cristóvão, a carne de porco do alguidar, o cabrito assado no forno e, em sua época, os tordos em vinha-d´alhos e o pombo bravo estufado com ervilhas» p. 93

«Uma rapariga nova e bonita, (...), entrou segurando uma bandeja com o seu pequeno-almoço habitual, (...): chá e sumo de limão acabado de espremer, torradas com manteiga e compotas, um ovo mexido (...)» p. 103

«Bebeu a infusão de chá de cidreira com sais de frutos que a mãe passara discretamente (...)» p. 128

«Lembrava-se de então ver a mãe a fazer o almoço que iria levar ao pai no campo - nada mais do que uma aguada com azeite, um dente de alho e urtigas a boiar dentro de um tarro de cortiça e onde, nos dias felizes, o pai encontraria também um pedaço de toucinho a dar alguma cor e alguma substância àquela sopa de pobre. E lembrava-se de ver o pai voltar alquebrado ao fim do dia e, nas noites de Inverno, sentar-se junto ao lume no banco de madeira (...) e sacar do bolso algumas bolotas que apanhara do chão e começar a roê-las, como se fosse comida - aquela comida roubada aos porcos que vagueavam no montado de Valmonte. » p. 136

«E ele estendia-lhe uma mão cheia de castanhas, que depois de enfiadas dentro de um púcaro de barro para assar na borralha do lume.» p. 137

«Podiam enfim comprar um porco todos os anos, que a horta e as bolotas alimentavam e cuja matança, nos frios de Dezembro, atulhava a casa de enchidos dependurados a fumar sobre o lume e de arrobas de carne guardadas em vasilhas de sal ou de azeite, assegurando uma reserva de comida para quase metade do ano.» p. 137

«- Dona Maria da Glória, ponho um pau de canela nas compotas de laranja? (...)
- Só nas de laranja amarga (...)»p. 142

«Era ela que cozinhava para o marido, mas, ao contrário da mãe, não era "comida de ganhão", mas sim comida de patrão o que levava ao seu homem: cabeça de xara, escabeche de perdiz, omolete de espargos verdes ou fígados de porco de coentrada» p. 146

«Entrado Novembro, já ela [Maria da Glória] se agitava na expectativa dos preparativos, já começava a combinar com a cozinheira Maria os doces da Consoada, já ia à capoeira marcar o peru da ceia e recomendar que só lhe dessem bolotas a comer, já assentara com o padre Julio os mesmos preparativos de sempre para a Missa do Galo, já massacrara a cabeça de Diogo para que ele não se esquecesse de encomendar na casa Terra Nova, da Rua dos Bacalhoeiros, em Lisboa, o bacalhau graúdo que ela haveria de cozer com as couves da horta. » p. 151

«Terminada a conversa de negócios, apanharam um eléctrico para o Chiado e daí foram a pé para o Tavares Rico (...). Era o melhor, o mais luxuoso, o mais requintado restaurante de Lisboa e celebrava agora os seus 150 anos de história com nova remodelação, das várias que já tivera desde que nascera como simples tasca fundada por dois irmãos em 1779. (...) eles celebraram o seu reencontro (...) com uns canapés de lagosta acompanhados com champagne Taittinger, seguidos de um arroz de perdiz cuja receita se atribuía ao escritor Fialho d´Almeida, e terminando com uns crêpes Suzette flambeados em Grand Marnier. »p. 160

A grande parte das comidas referidas são da região do Alentejo, que é, no livro, onde se passa grande parte da acção.

Sempre que leio estas citações dá-me uma fome. Alguém têm algumas das receitas referidas?

Continua.

8 comentários :

Migas disse...

Também já acabei de ler este livro e imaginava os cheiros e sabores de alguns pratos que eu nunca tive a oportunidade de provar. Dava por mim a pensar que, mesmo sem querer, fui escolher um livro com tantas referências a comida e pratos típicos alentejanos. Deu saudades do Alentejo e imensa curiosidade. Sobretudo dos fartos jantares de Natal, na casa dos Ribera Flores! :o)

Quantos aos pratos, não te consigo ajudar mas penso que alguém vai concerteza aparecer por aqui com dicas! :o)

Belo livro, não?

Beijinhos e, caso tenhas sugestões literárias, eu aceito!

Mónica Pinto disse...

Adoro livros com referências gastronómicas, ainda não li este, mas agora passou a ser prioritário. Bjs

Ps. No livro Cozinha Tradicional Portuguesa vêm algumas das receitas aqui referidas.

Anónimo disse...

Já andava com vontade de adquirir este livro, mas depois deste seu comentário, mais me aguçou o apetite!!!Sendo toda a Culinária Portuguesa excelente, a Alentejana é para mim muito especial, porque além de tudo é muito imaginativa e simples. A açorda de urtigas tem imensas propriedademedicinais.Numa busca rápida no Livro de Pantagruel vem um arroz de perdiz (pag.553);Pombo bravo estufado com ervilhas (à florentina, pág.215); Cabeça de Xara (pág.431);Perdiz dos 14(pág.538), não é o mesmo mas deve andar lá muito perto.O Coelho desfiado à S. Cristóvão deve ser bom, mas só encontrei na pág.524 Tigelinhas de Santo Huberto que são feitas com os restos do coelho bravo estufado.Percebe-se bem porque é que ficamos com água na boca!!!Gostei muito deste tema de conversa e gosto muito da sua "cozinha", Bjs. Bombom

Angel disse...

Tens no teu blog coisas tao deliciosas! Dá vontade de comer! E a dieta? Fica para a semana ñ é? :)
Vou linkar-te ao meu blog.
Jokas

Carolina Andrade disse...

Esse livro deve ser demais. Vou procurá-lo num sebo,pois os livros aqui são muito caros!!! Muito legal. Grande beijo!!

threefatladies disse...

Eu, as minhas 2 colegas de blogue e a Suzana (gourmets amadores) estamos a combinar o jantar com a Fer para dia 22. Pelo teu comentário lá no Chucrute fiquei convencida que também estarias interessada em encontrar-te com a Fer. Ainda não decidimos o local do jantar. Se estiveres interessada, diz-me qualquer coisa para o e-mail das threefatladies. Não consigo escrever para o teu email por isso deixei aqui o comentário. Depois apaga-o se quiseres.

bjs

threefatladies disse...

o eu é a Pipoka!

Anónimo disse...

Nos meus anos deram-me este livro e à muito tempo que estou para o começar a ler, mas ando sem tempo.
Mas agoa fiquei mesmo com voltad de o devorar xD