A história liga Portugal, Espanha e o Brasil através da família Ribera Flores e em especial, através do personagem Diogo Ribera Flores, alentejano e descendente de proprietários de terra em Estremoz. Mas não é sobre a história do romance que eu pretendo escrever este post.
Um dos aspectos que gostei foi as referências gastronómicas que Miguel Sousa Tavares vai colocando ao longo do seu livro e que nos dão a conhecer um pouco dos hábitos, tradições, influências e estilo de vida dos portugueses, na primeira metade do século passado. Um povo também se conhece pelos seus hábitos alimentares (já devo ter lido isto algures!). Ao ler as referências identifico-me com imensas coisas relacionadas com a maneira de viver das gentes do campo, as diferenças de estatuto social viam-se, entre muitas outras coisas, pela mesa. Pela mesa farta ou por uma mesa de míngua.
Como este é um blogue dedicado à gastronomia, aqui ficam as referências que Miguel Sousa Tavares faz no seu livro. Deliciem-se!
Miguel Sousa Tavares,
Rio das Flores,
Oficina do Livro, 1ª edição_Outubro de 2007
«(...) Virgolino, que distinguia ao longe todos os pássaros, escutava todos os sons num raio de quilómetros, sabia as histórias de toda a gente, desde os "antigos" até os vivos, e, enquanto falava, ia desenrolando um lenço sujo que sacava do bolso do colete e de lá dentro tirava um pedaço de queijo duro e seco de ovelha ou um resto de chouriço que cortava minuciosamente com o seu canivete sempre à mão (...)» p. 14 e 15
«Os criados jantaram na cozinha e eles numa mesa junto ao grande fogão de sala, (...) enquanto esperavam pelo jantar, com umas lascas de excelente presunto da serra curado à lareira e vinho do planalto andaluz. (...) Veio uma sopa de legumes com grão e batatas, as perdizes caçadas de antevéspera, estufadas com enchidos, azeitonas e toucinho, e um assado de perna de porco com salada de alface. Vários jarros de vinho vieram e regressaram vazios (...).» p. 17
«(...) esperavam que o pai abrisse a discussão política que antecedia invariavelmente a sobremesa, o café, o
brandy e os charutos, (...) o sabor do ensopado de borrego, com batatas novas e grão, demorando-se-lhe na boca, antecedendo o pato com azeitonas, que era apenas um ritual para quem porventura ainda tivesse apetite ou gula (...)» p. 54
«Tornou-se um conhecedor e um apreciador do serviço do restaurante [
Hotel Avenida Palace na Avenida da Liberdade, em Lisboa], da sua excelente garrafeira e dos seus pratos de referência - os
hors-d´oeuvres, os ovos mexidos com espargos verdes, o
foie gras trufado, o rodovalho assado no forno com tomate
farci, o empadão de lebre ou o pato estufado com azeitonas.» p. 70
«Pedro falava enquanto metia à boca simultaneamente uma azeitona curada e um bocado de pão, o olhar já pousado na terrina de sopa de beldroegas com tomate e queijo de ovelha.» p. 77
«Se apurasse mais o ouvido, ouviria também (...) - um "cantar alentejano" dos homens de Valmonte, afinando as gargantas com uma aguardente de medronho bebida à porta da botica da herdade (...)» p. 84
«(...) muitas vezes se sentava à sombra de um sobreiro e, tal como eles, sacava do seu rancho de "comida de ganhão", como lhe chamavam à base de alho, azeite, coentros, pão e um corte de toucinho para engrossar o caldo. Ou então, se a horta tivesse corrido bem, ficava-se por um gaspacho, que mais não era do que uma água mantida fria dentro de um recipiente chamado
tarro, acrescentada de azeite e vinagre e onde boiavam pedaços de pão, tomate, cebola e pimento.» p. 87 e 88
«O cheiro a sardinhas, às belas sardinhas gordas e prateadas de Julho, que agora subia no ar da praça proveniente das várias barraquinhas de comida (...)» p. 92
«Comia (...), umas febras na grelha, acompanhadas de quando em quando por uns nacos de toucinho rigorosamente banha, umas farinheiras, (...), e umas rodelas vadias de chouriço de sangue, tudo acompanhado por incontáveis copos de vinho branco fresco (...).» p. 92 e 93
«A Diogo bem lhe apetecia também umas sardinhas no pão, que aquele cheiro era irressitível para quem passava.» p. 93
«Paravam ali [hotel Palace, em Estremoz], dizia-se, maravilhados pela sua
cabeça de xara de porco em vinagrete, as migas de espargos selvagens, os pezinhos de coentrada, as migas de bacalhau, a perdiz estufada com os seus dezassete temperos de lei, o coelho desfiado à S. Cristóvão, a carne de porco do alguidar, o cabrito assado no forno e, em sua época, os tordos em vinha-d´alhos e o pombo bravo estufado com ervilhas» p. 93
«Uma rapariga nova e bonita, (...), entrou segurando uma bandeja com o seu pequeno-almoço habitual, (...): chá e sumo de limão acabado de espremer, torradas com manteiga e compotas, um ovo mexido (...)» p. 103
«Bebeu a infusão de chá de cidreira com sais de frutos que a mãe passara discretamente (...)» p. 128
«Lembrava-se de então ver a mãe a fazer o almoço que iria levar ao pai no campo - nada mais do que uma aguada com azeite, um dente de alho e urtigas a boiar dentro de um tarro de cortiça e onde, nos dias felizes, o pai encontraria também um pedaço de toucinho a dar alguma cor e alguma substância àquela sopa de pobre. E lembrava-se de ver o pai voltar alquebrado ao fim do dia e, nas noites de Inverno, sentar-se junto ao lume no banco de madeira (...) e sacar do bolso algumas
bolotas que apanhara do chão e começar a roê-las, como se fosse comida - aquela comida roubada aos porcos que vagueavam no montado de Valmonte. » p. 136
«E ele estendia-lhe uma mão cheia de
castanhas, que depois de enfiadas dentro de um púcaro de barro para assar na borralha do lume.» p. 137
«Podiam enfim comprar um porco todos os anos, que a horta e as bolotas alimentavam e cuja matança, nos frios de Dezembro, atulhava a casa de enchidos dependurados a fumar sobre o lume e de arrobas de carne guardadas em vasilhas de sal ou de azeite, assegurando uma reserva de comida para quase metade do ano.» p. 137
«- Dona Maria da Glória, ponho um pau de canela nas compotas de laranja? (...)
- Só nas de laranja amarga (...)»p. 142
«Era ela que cozinhava para o marido, mas, ao contrário da mãe, não era "comida de ganhão", mas sim comida de patrão o que levava ao seu homem: cabeça de xara, escabeche de perdiz, omolete de espargos verdes ou fígados de porco de coentrada» p. 146
«Entrado Novembro, já ela [Maria da Glória] se agitava na expectativa dos preparativos, já começava a combinar com a cozinheira Maria os doces da Consoada, já ia à capoeira marcar o peru da ceia e recomendar que só lhe dessem bolotas a comer, já assentara com o padre Julio os mesmos preparativos de sempre para a Missa do Galo, já massacrara a cabeça de Diogo para que ele não se esquecesse de encomendar na casa Terra Nova, da Rua dos Bacalhoeiros, em Lisboa, o bacalhau graúdo que ela haveria de cozer com as couves da horta. » p. 151
«Terminada a conversa de negócios, apanharam um eléctrico para o Chiado e daí foram a pé para o
Tavares Rico (...). Era o melhor, o mais luxuoso, o mais requintado restaurante de Lisboa e celebrava agora os seus 150 anos de história com nova remodelação, das várias que já tivera desde que nascera como simples tasca fundada por dois irmãos em 1779. (...) eles celebraram o seu reencontro (...) com uns canapés de lagosta acompanhados com
champagne Taittinger, seguidos de um arroz de perdiz cuja receita se atribuía ao escritor
Fialho d´Almeida, e terminando com uns
crêpes Suzette flambeados em
Grand Marnier. »p. 160
A grande parte das comidas referidas são da região do Alentejo, que é, no livro, onde se passa grande parte da acção.
Sempre que leio estas citações dá-me uma fome. Alguém têm algumas das receitas referidas?
Continua.