O meu nome é Anouk e estou cansada de andar de um lado para o outro. A minha mãe, Vianne Rocher, quando sente a força do vento do Norte, irmão de
Nótus e de
Zéfiro, na janela do quarto, a bater, a bater, já não consegue descansar. Começa a andar irritada. Inquieta.
No primeiro dia, antes de partirmos, eu notei logo que alguma coisa não estava bem. Primeiro foram os
mendiants que a mãe tanto gosta de fazer. São os seus preferidos. Com uma camada de chocolate fina, passas de uva maceradas em rum, amêndoa, uma noz, uma violeta e uma rosa cristalizada. São deliciosos. Fazem-me lembrar os dias de Verão com noites frescas, o cheiro a relva molhada, a brisa do rio que nos batia suavemente no rosto, quando estávamos, na aldeia de Lansquenet-sur-Tannes com Roux, por quem a mãe tinha um fraquinho. Ou pelo menos corava sempre que ele olhava para ela. Eu achava tanta piada ao seu embaraço. Naquele primeiro dia a mãe não acertava com a camada de chocolate. Dizia que não a conseguia fazer o suficientemente fina de modo a ficar estaladiça. Para mim, era apenas impressão dela. Alguma coisa começava a não estar bem.
Nos dias que se seguiram o vento continuou imperiosamente a fustigar as janelas e a mãe começou a ficar cada vez mais nervosa. Num dos dias, mesmo assim, acordou bem disposta e foi para a cozinha. Preparou um tabuleiro de
mendiants du roi, fatias de laranja cristalizada embebidas em chocolate escuro e polvilhadas com folha de ouro comestível. A mãe é uma feiticeira do chocolate. Os seus
mediants eram tão bonitos que até dava pena comê-los. Quando tudo parecia correr bem, Zozie, a rapariga dos sapatos vermelhos que nos ajudava na Chocolaterie parte o prato de Murano azul com uma florzinha no rebordo. Esse prato tinha sido uma oferta de Roux antes de partirmos para Paris. E a mãe, acho que viu aí um sinal. Correu para o quarto e sei que foi lançar as cartas.
Qualquer coisa pode despertar o vento. Um gesto. Um sinal. Uma palavra. Tudo aquilo que possa alterar o equilíbrio. Por isso há que voltar de novo à estrada. Isso apavoráva-me. Sempre a mudar de sítio. De um lado para o outro. A deixar os amigos. Ali em Paris tinha amigos. Gostava tanto quando o Jean-Loup nos visitava e começava a tirar fotografias. O seu chocolate preferido era o de amêndoa amarga. Isto é uma das particularidades da mãe, consegue sempre adivinhar o chocolate preferido das pessoas. Jean-Loup fazia-me rir e era divertido. Acho que gostava muito dele. Para piorar a situação, Rosette, a minha meia irmã, andava sempre irrequieta. Parecia que só fazia asneiras e quem arcava com as culpas de tudo era sempre eu.
Sei que a mãe tentou parar a força do vento. Mas estávamos em Dezembro, o último mês do ano e como a mãe diz, «Dezembro, cuidado; Dezembro, desesperado». Dezembro tem uma força especial diferente de qualquer outro mês. É uma altura de sonhos, de luzes, de Natal, de partilha, dos sorrisos das crianças a pensar nos presentes, da esperança das famílias. E isto altera tudo. A mãe, mesmo sabendo que não devia, ainda tentou alguns pequenos truques de magia, sal espalhado à porta, uma bolsinha de seda com laranja seca, mas a força das sombras e do vento não a deixaram em paz. Tinha que partir.
Mas qual é o segredo? Mas que forças nos empurram e obrigam a partir? Será um demónio? A Bruxa má da casa de gengibre? A Rainha do Inverno? A mãe diz que o vento lhe segreda que a magia desapareceu. Que é preciso recomeçar num outro lugar. Uma e outra vez. Percebi que íamos partir novamente quando numa noite, com a mãe e Rosette a dormir, desço à cozinha e vejo os tachos de cobre e de esmalte, a placa de granito onde a mãe molda o chocolate fundido, os termómetros do açúcar, as formas de plástico e de porcelana, as espátulas, as escumadeiras, tudo devidamente embrulhado e pronto para ser guardado.
Nessa noite, o vento não parou. Soprava de uma forma agreste. Assobiava nas frinchas das portas e janelas como um animal ferido. Para a mãe tinha chegado a hora. Acordou-nos. Vestiu-me com a sua capa vermelha, agarrou em Rosette e num saco grande que estava pronto e bem fechado. Saímos. O vento não nos largou. Abanáva-nos. Varria-nos como se fossemos folhas caídas no chão. A mãe agarrou-nos bem, sei que estava com medo de nos perder. Ainda não tínhamos chegado ao fim da rua quando um homem se aproxima de nós. Como estava escuro, só o consegui reconhecer pelos cabelos ruivos, presos na nuca. Roux esperava por nós. Desta vez, a mãe preparou tudo e isso deixou-me feliz.
Hoje chegámos a um novo local. Parece simpático. A cidade tem uma luz especial. Ao longe vejo um castelo e um rio, o
Tejo. A mãe preparou para nós uma sopa de abóbora picante com chocolate. Esta é a receita que costuma fazer quando mudamos de sítio e ela se sente feliz. A abóbora é um fruto mágico que combinado com o fogo do picante nos dá coragem. O chocolate ajuda as pessoas a revelar a magia que têm dentro delas.
O céu está azul e o vento não se sente. Com Roux, Rosette e a mãe, sinto pela primeira vez que tenho uma família. Acho que vou gostar deste novo sítio.
Creme de abóbora picante com chocolate
Ingredientes:
900g de abóbora cortada em pequenos cubos
2 cebolas cortadas em meias luas
7 dentes de alho
sal e pimenta de moinho q.b.
1dl de azeite
1 cubo de caldo de legumes (biológico)
5dl de água quente
1 colher de chá de
harissa
chocolate negro ralado com 70% de cacau para servir
1. Num tabuleiro colocar a abóbora, as cebolas e o alho. Temperar com sal e pimenta a gosto. Regar com o azeite e levar ao forno previamente aquecido a 200ºC durante 40 minutos.
2. Colocar os legumes assados numa panela. Adicionar o cubo de caldo de legumes, a harissa e a água quente. Triturar a mistura com a ajuda da varinha-mágica.
3. Servir o creme com chocolate ralado.
Com esta história e receita participo no evento
Chocolate e Picante: Um desafio de receitas com histórias dentro, organizado pela minha amiga Suzana do blogue
Gourmets Amadores.
A história é inspirada em personagens dos livros
Chocolate e
Sapatos de Rebuçado, romances da escritora
Joanne Harris. Este creme de abóbora foi feito a partir de
uma receita encontrada no blogue
Local Kitchen Blog.
Espero que gostem!