As memórias associadas à comida são sempre ricas e inigualáveis. O momento em que as vivemos não se volta a repetir e por isso, têm um sabor singular. Uma das memórias que guardo de forma especial é da minha avó Gertrudes, de lenço escuro na cabeça, na sua cozinha a fazer queijo fresco. No final, oferecia-me sempre uma ovelhinha, que não era mais do que um resto de queijo coalhado que apertava entre os dedos. Nunca mais comi, mas a memória que guardo desses momentos e do que saboreei é de conforto. É uma memória doce. Talvez por isso tenha tanta curiosidade em perceber como se faz queijo fresco de forma tradicional.
E no fim-de-semana passado tive essa oportunidade. Cheguei a Foz de Odeleite pela manhã. As águas do Guadiana corriam tranquilas em direcção ao mar e contrastavam com o verde da terra e das oliveiras, e do outro lado da margem, avistávamos Espanha. O sol espreitava por entre o azul do céu escondendo as nuvens que tentaram trazer a chuva. Assim que saí do carro, um cheiro doce, quente pairava no ar - o que seria? - questionei-me. Caminhei, com o restante grupo com quem passei o fim-de-semana a convite da Salmarim, em ruas estreitas de pedra até uma pequena loja. Pelo caminho, silêncio e muitas casas bonitas, vazias, à espera da chegada do rebuliço do Verão.
Ao entrar na queijaria João Manuel G. Ribeiro, o cheiro quente e doce intensifica-se. Agora já sei do que é. Deparo-me com uma sala com uma mesa central grande de inox. Panelas ao lume. É aí que a magia do queijo acontece. As mãos sábias de D. Otília vão colocando o queijo nas formas. Meto conversa. Otília Glória Gonçalo Ribeiro tem 78 anos e é a mãe do actual proprietário. Em frente, com a mesma tarefa está Isabel Cavaco de 72 anos e uma jovem, neta de ambas, que desembaraçadamente tira as panelas do lume ou o leite coalhado para a mesa, onde o soro escorre, e se coloca nas formas. A simpatia é imensa. D. Otília explica-nos como se faz o queijo. O filho, tem um rebanho de cabras algarvias, com 150 a 200 cabeças, que produzem o leite utilizado na queijaria.
O leite é fervido. Depois, terá que arrefecer até aos 56 ou 57ºC. Para ajudar a acelerar o processo na sala têm uns recipientes grandes cheios de água onde colocam as panelas com o leite quente. Quando atinge a temperatura desejada adicionam o sal e o coalho. Este último é feito com flor de cardo. As flores, são trituradas e colocadas em água de um dia para o outro. Depois o líquido é coado. O resultado é uma água castanha, que D. Otília me mostrou. Para mim, foi uma surpresa. Sabia que se usava a flor de cardo para coalhar o leite, mas não sabia como era feito. Sei que antigamente, na minha terra, também se usava coalho animal.
Depois dos queijos feitos, seguimos viagem. A próxima paragem foi na Casa de Odeleite. A casa pertenceu outrora a João Xavier e à sua mulher, Claudina. Foi um entreposto de trocas no início do século XX. Uma casa que guarda a grandiosidade do seu passado. Aqui os nossos anfitriões, Jorge Raiado da Salmarim e Andrew e Rupert da Casa Rosada fizeram-nos uma surpresa.
Pão acabado de fazer foi colocado na mesa. Chegaram também os queijos frescos que vimos preparar de manhã, a que se juntou azeite e manteiga de azeite. O cheiro bom do pão quente é inspirador. Este pão foi cozido em forno aquecido com lenha de esteva. Mas a surpresa estava no sabor. Provámos pão com e sem sal. O sabor de um e outro era completamente diferente. O mais saboroso, sem dúvida nenhuma era o que tinha levado sal. O outro, parecia-me doce e as fatias não se revelavam gulosas. O sal torna a comida mais saborosa. Faz falta. Tempera a comida e a vida.
Enquanto saboreava o pão com o queijo fresco lembrei-me de D. Otília. De rosto doce e sorriso simpático. Das suas mãos marcadas pelo tempo a colocarem o queijo coalhado nos cinchos. E foi com esta imagem, que segui viagem.
5 comentários :
Olá Laranjinha
Que viagens maravilhosas nos convidaste a fazer contigo!
Primeiro com as memórias da Avó Gertrudes e o seu queijinho fresco...memórias de Avó são tão boas e doces! Da minha, ficou-me a da Bola de Trás-os-Montes, terra do meu Avô, que ela tão bem fazia.
Depois, a tua viagem por Odeleite onde ainda se faz o queijo de cabra com o cardo. Eu também ouvia falar, mas nunca soube qual era o cardo utilizado nem como se fazia.
Já o outro coalho que referes, era utilizado na minha aldeia para o queijo de cabra. É uma massa acastanhada e de cheiro forte a cabra, que se tira do interior do estômago das cabras. Só se põe um pedacinho pequeno no leite a coalhar e o queijo fica com óptimo paladar a "cabreiro". Desse já não usa, pois as pessoas preferem o de compra, mas não fica um queijo tão saboroso como o de antigamente.
E o teu passeio acabou em beleza: um bom queijo pede um bom pão! E o azeite completa a magia das coisas simples e boas que a vida nos pode proporcionar.
Obrigada pela partilha destes momentos tão ricos e que tu, tão bem sabes contar. Bjs. Bombom
Querida Bombom,
o queijo é uma arte. É pena que algumas tradições se vão perdendo. Pensei que já não existisse este tipo de queijarias. Nem imagina como fiquei contente em perceber que afinal ainda se vão mantendo.
Obrigada pelas suas palavras doces. Deixaram-me muito contente.
Um beijinho.
E que arte! Tenho pena que algumas destas riquezas se são perdendo (e por isso é bom que haja quem escreva sobre elas e que estes saberes vão passando de geração em geração).
Que bela viagem através destes sabores algarvios. De um Algarve que nem todos conhecem e que muitos esquecem.
Obrigada por esta belíssima partilha!
Beijinhos,
Ana
Acho, sinceramente, que a memória é das melhores inspirações na cozinha.
Linda Homenagem.
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