quarta-feira, 26 de março de 2014

Capão, uma herança dos romanos


A primeira vez que me lembro de ouvir falar de capão foi por altura do Natal. Em casa dos meus pais, o peru assado inteiro no forno não é uma opção. Penso que nunca foi. A família acha sempre a carne seca e procuram-se outras alternativas, o cabrito é uma delas, mas pensou-se também no capão (galo capado). Na altura, onde comprá-lo, vivo, revelou-se missão impossível ali para os lados do Ribatejo. E foi assim que o polvo, ganhou tradição nos almoços de Natal. Hoje em dia, sei que já é possível encontrá-lo à venda, pronto a cozinhar, em alguns espaços. Capão à Freamunde, a receita tradicional tive a oportunidade de a degustar pela mão do chef Hélio Loureiro.

«A origem do capão remonta aos tempos romanos. Diz-se que na Roma antiga, o cônsul Caio Cânio, restringido nas suas horas de sono pelo alvorecer sonoro dos galos, teria conseguido fazer aprovar uma lei no senado que proibia a existência dos galináceos no perímetro urbano da cidade.

Privados do prazer da sua carne, os súbditos logo inventariam uma forma engenhosa de contornar a disposição legal, capando os galos. Surgia assim o capão, o sápido eunuco que, na sua nobreza e requinte, se tornou comparável ao faisão, à perdiz e à galinhola. Diz-se que desvirilizados, eles pararam de cantar, para consolar a perda da função, começaram a alimentar-se compulsivamente e a engordar bastante. Ao serem abatidos, mostraram-se iguarias sublimes. Os romanos descobriram que quanto mais cedo fosse realizada a castração, melhor seria o sabor da carne. E, pelos caminhos de Roma, chegaria até nós este costume e este processo que enriquecia a gastronomia (...) acrescentando-lhe nova e delicada iguaria.
(...)
O Capão ganhou importância com a Feira dos Capões realizada em Freamunde, instituída por provisão do rei D. João V, em 1719. No entanto, alguns historiadores referem que esta feira já tem lugar desde o século XV. Ainda hoje se realiza a 13 de Dezembro e conta com a eleição do melhor "Capão Vivo". O capão se não for bem capado não ganha determinadas características, sendo nesse caso chamado "Rinchão".»
in Capão à Freamunde

O segundo jantar do projecto Endógenos foi dedicado ao capão, designado por vários escritores entre eles, Gil Vicente, Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, como Manjar dos Reis. O local escolhido foi o restaurante Aviz e o jantar preparado pelo promissor chef Cláudio Pontes.

O jantar intitulou-se O Galo Capão em VI Actos. Em cada acto era servido um prato alusivo ao ciclo de vida do capão. O acto I - Ainda na mãe galinha onde tudo começa - foi-nos servido um cocktail de boas vindas, Dry Capão. Um ovo de galinha recheado com gema de ovo batida com hidromel e por cima, uma almôndega de capão servida com uma haste de orégãos secos. A primeira coisa que me chamou a atenção foi a originalidade da apresentação. A outra, o sabor bom da gema de ovo.


A entrada constituiu o acto II - O bater de asas. O prato servido foi capão com três texturas de nabo, puré, em cubos e crocante. Foi uma excelente maneira de começar este jantar. Uma entrada muito interessante. O vinho servido foi Stanley Alvarinho e Verdelho de 2012.


No acto III - De peito cheio no 1º cantar - chegou-nos à mesa peito de capão recheado com manteiga de azeitona galega, panado com corn flakes e a acompanhar nabo, puré de nabo e rabanetes. Que delícia. A manteiga de azeitona deu um sabor especial à carne e a textura crocante, sobressaía de forma gulosa. O vinho servido foi Stanley Chardonnay de 2011.


O momento da castração foi assinalado no acto IV - A Opulência da castidade - onde nos foi servido o capão com um arroz a lembrar a cabidela, com sangue de beterraba e uma crista crocante de massa. A imaginação e a criatividade, foram surpreendendo os participantes deste jantar a cada prato servido.


A sua última noite na capoeira foi o acto V. O capão foi recheio de uma massa. Ao abrir a tampa da massa, descobri um pedaço de carne tenra e suculenta, que combinou na perfeição com os outros elementos do prato, como os cogumelos. Uma das surpresas deste prato foi um pedaço do pé do capão. Tão saboroso. Cozinhado em vinho tinto e com um sabor ligeiramente caramelizado, tornou-se memorável!


O jantar dedicado ao capão foi sempre em crescendo e terminámos a refeição, encantados. O acto VI - O renascer de uma "doce" vida - trouxe-nos uma sobremesa com uma história para contar. Uma camada de massa a lembrar a terra, um ovo recheado, uma clara alusão a um novo ciclo - o recomeçar, e outros elementos que remetem para a vida das capoeiras, como o milho e pequenas ervas. O capão estava incluído na sobremesa através de uma trufa de chocolate recheada com fígado. Acompanhámos a sobremesa com um vinho Stanley Espumante Rosé Reserva de 2009.


O que gosto nos jantares do projecto Endógenos é a possibilidade de degustar produtos pouco comuns ou de difícil acesso, da nossa gastronomia, pela mão de talentosos chefs. É um enaltecer das coisas boas que temos em Portugal e que merecem ser divulgadas. O chef Cláudio Pontes surpreendeu e está de parabéns por este jantar. Nas edições do Endógenos, o ingrediente escolhido entra na refeição desde a bebida de boas vindas até à sobremesa, o que não se revela uma tarefa nada fácil.

A terceira edição do projecto Endógenos será em Peniche, no dia 5 de Abril de 2014. Tem como tema as algas. Vai ser por certo mais uma refeição cheia de surpresas.


Outro olhar sobre este jantar:
- O capão ou quando menos é mais por Fátima Moura.

Refeições anteriores do projecto Endógenos:
- Um jantar dedicado ao ouriço-do-mar;
- Um jantar de elogio ao medronho.

Mais informações sobre o projecto Endógenos na respectiva página no Facebook.

4 comentários :

Manuela Lourenço Marques disse...

Bem... eu nem sei o que comentar... o melhor mesmo é levantar e aplaudir de pé
:)

Laranjinha disse...

Manuela,
estes jantares são mesmo especiais.
Um beijinho.

José Cardoso disse...

Posso garantir que é um verdadeiro pitéu.
http://cozinha-do-zezao.blogspot.com/2012/01/capao-recheado-com-novilho-e-azeitonas.html
............................Bom Apetite

Diário de um Anjo disse...

Creio que não conseguia só de saber que o animal foi mutilado para dar origem a uma comida gourmet...sei que temos que nos alimentar de animais mas não é necessário fazê-los sofrer ao longo da vida só por mero prazer humano